A vida nas modernas sociedades capitalistas é atravessada por diversos valores impostos que incidem sobre a vida das pessoas, desde as relações de trabalho até as relações familiares e conjugais. Os imperativos da competitividade e individualismo, por exemplo, não se limitam à esfera econômica, pois também atuam na subjetividade do ser. O ser humano, que é social por natureza, ao se ver inserido em um sistema de vida em que o mote é a busca pelo capital, irá apresentar ideias, anseios, expectativas e medos diferentes de um ser humano que cresceu em uma sociedade tribal, ou outro tipo de sociedade, por exemplo.
Em sociedades geridas por estados capitalistas, a população se encontra dividida de acordo com a sua função na produção e classificada de acordo com o número de salários mínimos de sua renda. Pertencer ao grupo social que necessita vender sua força de trabalho no mercado por salário para sobreviver significa ter de lidar com o desafio diário de manter-se com a renda que lhe é designada, o que muitas vezes é insuficiente, especialmente entre as classes C, D e E, que vivem com 2 a 10 salários mínimos. Isso reflete em uma constante busca para fugir do desemprego e da pobreza, sofrendo constante pressão econômica. Por esse motivo, se torna necessário a realização de ajustes no estilo de vida das famílias, de modo a conter gastos e priorizar o que for realmente necessário; tarefa que pode acarretar muitos conflitos à dinâmica familiar, especialmente em contextos de crise econômica.
No contexto da atual crise econômica brasileira, onde as taxas de desemprego se encontram altas, abarcando mais de 10 milhões de indivíduos, alta inflação no preço dos combustíveis e alimentos e praticamente metade da população está em situação de insegurança alimentar, o estado da saúde mental da população trabalhadora do país evidentemente sofre as consequências dessa pressão econômica. Frente a isso, pesquisas na área de psicologia social como a da professora Sandra Elisa de Assis Freire são muito importantes para trazer uma maior compreensão deste fenômeno e assim contribuir para a redução do sofrimento mental dos brasileiros e promover melhor qualidade de vida.
Sua pesquisa, intitulada “Pressão Econômica, Casamento e Prática parental: como se encontra a dinâmica familiar no contexto da crise financeira?” tem o objetivo de elaborar e reunir evidências de validade e precisão da Escala de Pressão Econômica, tendo por base os indicadores de pressão econômica propostos no modelo de Estresse Familiar elaborado por Conger e Elder e a influência da pressão econômica sobre o conflito conjugal e problemas disciplinares dos filhos, como também ampliar o modelo para incluir outras variáveis que possam trazer soluções no enfrentamento da pressão econômica. O trabalho obteve financiamento da FAPEPI através do Edital Nº 007/2018 – PROGRAMA PRIMEIROS PROJETOS (PPP).
O Modelo de Estresse Familiar (FSM – Family Stress Model) foi desenvolvido em 1994 pelos pesquisadores Conger e Elder na tentativa de explicar como os problemas financeiros influenciavam as famílias no cenário de uma grave recessão econômica agrícola que atingiu o estado de Iowa, EUA, durante a década de 1980. O modelo propõe que as dificuldades econômicas levam à pressão econômica na dinâmica familiar. O termo pressão econômica refere-se à avaliação subjetiva que a pessoa faz de sua situação financeira, por exemplo quando não está conseguindo pagar as contas e cumprir com as responsabilidades financeiras, o que pode ocasionar estresse e conflitos.
De acordo com a professora e pesquisadora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Piauí (Campus Parnaíba), com essa pressão econômica, a relação conjugal é uma das áreas mais afetadas, tendo sido associada à instabilidade marital, aumento de conflitos, padrões de comunicação negativos e menor qualidade de relacionamento. De acordo com o Modelo de Estresse Familiar, as desacelerações macroeconômicas, como inflações e recessões, que produzem altos níveis e longos períodos de desemprego, combinadas com redes de segurança social limitadas que não têm capacidade de proteger adequadamente as famílias vulneráveis, criam dificuldades generalizadas para os indivíduos e suas famílias.
O Modelo de Estresse Familiar propõe que a pressão econômica pode ser medida por meio de indicadores como: a impossibilidade de satisfazer a algumas necessidades básicas, como é o caso da alimentação e compra de roupas; incapacidade de pagar as despesas, e a necessidade de fazer reduções e ajustes em aspectos essenciais, como é o caso do cuidado com a saúde. O modelo sugere que dificuldades no âmbito financeiro desencadeiam uma pressão de caráter subjetivo no meio familiar/conjugal e ainda prevê que, no caso de um aumento no nível da pressão econômica, os pais correm maior risco de apresentar sofrimento emocional (ex. depressão, ansiedade, raiva) e problemas comportamentais (ex. uso de substâncias). Este modelo tem sido testado em vários países que apresentam realidades econômicas e culturais distintas, e os resultados dos achados dessas pesquisas têm convergido para a semelhança dos resultados observados no estudo original.
Desta forma, indivíduos em famílias com dificuldades econômicas também experimentam sofrimento emocional, raiva e frustração, que afetam suas relações familiares. Estudos recentes também mostram que as crianças que crescem em condições de dificuldades econômicas estão em maior risco de apresentar problemas comportamentais, diminuição na competência social e habilidades cognitivas mais baixas.
Resultados de estudos recentes sobre o impacto da crise econômica sobre a saúde mental de indivíduos salientaram alguns aspectos que merecem atenção: ocorre o aumento de problemas de saúde mental em tempos de crise; o medo do desemprego, de perder casa ou não conseguir sustentá-la com as condições essenciais para a família. A redução de benefícios sociais, entre outros, acarreta um enorme stress nos indivíduos e nas famílias, o que pode conduzi-los a diversos problemas de saúde mental, tais como depressão, ansiedade, suicídio, entre outros.
A pesquisa durou 2 anos e contou com a participação de 369 pessoas, sendo a maioria do sexo feminino (65%) e 33,6% do sexo masculino, com média de idade de 36,5 anos. No que diz respeito à ocupação, 52% dos participantes informaram ter emprego fixo, 22,5% trabalham por conta própria e 14,6% declararam estar desempregados. Dentre outras informações, foi perguntado sobre alterações no rendimento da família no último ano, em que 36,9% afirmaram que o valor da renda diminuiu; para 37,9% dos participantes o valor manteve-se e para 22,8% dos participantes o valor aumentou. Ainda 60,2% dos participantes declararam que têm ou tiveram o nome negativado, e 79,9% afirmaram que a situação econômica do país afetou sua situação financeira, principalmente na área de desemprego e poder de compra.
A professora conta que este estudo forneceu diversos resultados exploratórios e com eles foi possível identificar uma estrutura de duas dimensões, diferente do que foi teoricamente preconizado por Conger e Elder (1994), cuja teoria destaca a pressão econômica composta por três dimensões, a saber: perda de renda, trabalho instável ou status de estar desempregado e endividamento. Enquanto que empiricamente no decorrer do trabalho a pressão econômica foi explicada por duas dimensões, de modo que a perda de renda exerce um papel conjunto com o trabalho instável e com o endividamento, e isso se mostrou coerente com os aspectos teóricos abordados.
Observou-se que o agrupamento dos itens nos fatores da Escala de Pressão Econômica permitiu a definição destes em 2 grupos. O fator 1 denominado “perda de renda e trabalho instável” corresponde à instabilidade financeira provocada por um trabalho que não garante seguramente uma renda fixa, levando as pessoas a vivenciar condições econômicas difíceis e gerando uma vulnerabilidade emocional, dessa forma as pessoas passam a procurar soluções para não ter dificuldades financeiras e não ficarem desempregadas. O fator 2 “perda de renda e endividamento” representa as mudanças financeiras negativas em forma de perda de renda que geram recursos limitados levando as pessoas a acumular dívidas que comprometem o orçamento familiar.
“A partir dos resultados preliminares, foi possível verificar que a pressão econômica foi preditora de sintomas de sofrimento emocional (estresse, ansiedade e depressão) entre os cônjuges, algo congruente com os resultados encontrados em estudos prévios que utilizaram o Modelo de Estresse Familiar. Uma possível explicação para tal resultado pode estar relacionada com a renda familiar da maioria das pessoas; 65,4% indicaram que sua renda familiar se encontrava entre 2 e 10 salários mínimos, em que – 35,0% disse sustentar a família entre 2 e 4 salários mínimos e 30,4% entre 4 e 10 salários mínimos; enquanto 28,3% sustentam suas famílias com até dois salários mínimos. Destas, 50,8% afirmou que a situação econômica do país afetou sua situação financeira e 41,7% disse que já esteve com o nome negativado no SPC (Serviço de Proteção ao Crédito) ou Serasa. Os resultados também permitiram confirmar a correlação entre a pressão econômica e os conflitos na relação entre os casais”, conta a professora.
Frente aos efeitos nocivos das crises econômicas na dinâmica familiar e conjugal, as características individuais e os recursos que cada um possui no sistema familiar podem contribuir para desenvolver um enfrentamento positivo frente a crise. Estudos recentes indicam que atitudes positivas no enfrentamento dessa crise,contribui para o bem-estar do casal e dos filhos. Por exemplo, Taylor, Larsen-Strife, Conger, Widaman e Cutrona (2010) em seus trabalhos, identificaram que as mães otimistas demonstraram maior resistência ao impacto negativo do estresse econômico. Em termos de parentalidade, Brody, Murry, Kim e Brown (2002) descobriram que as mães com altos níveis de autoestima, juntamente com uma visão mais otimista da vida, eram mais propensas a exibir uma maternidade promotora de competências. Nessa mesma direção, Castro-Schilo et al. (2013) descobriram que as mães e os pais otimistas apresentavam uma parentalidade mais positiva, que estava associada à competência social de seus filhos. Estratégias semelhantes podem contribuir para uma melhor dinâmica entre casais, como conta a professora Sandra:
Pesquisas recentes apontam que a maneira como o casal maneja os recursos financeiros interfere na qualidade de seu relacionamento e tem implicações na qualidade de vida das famílias. Desta forma, se o casal mantém um constante diálogo sobre a distribuição da renda e um gerenciamento compartilhado do dinheiro, tais aspectos podem contribuir para o aumento da afetividade e intimidade conjugal, como também no aumento do nível de intimidade financeira e consequentemente estes aspectos podem contribuir de forma efetiva na adoção de estratégias positivas no enfrentamento da crise econômica”, finaliza a professora.
Além de uma gestão racional dos recursos financeiros, estes trabalhos mostram que o enfrentamento à pressão econômica também necessitam de medidas que vão além da renda em si, como o diálogo familiar e conjugal e inteligência emocional, que é indispensável para a resiliência em tempos de crise.